Jornal NH

31 de março de 1960.

Jota Feio

Aquela esquina ali, a mais feia de nossa cidade, já foi outrora uma das esquinas mais importantes de Novo Hamburgo. Já foi o que hoje é o Café Avenida, o que hoje é o cinema Lumiére. Já foi para nós que a conhecemos nos seus áureos tempos do Bar Juquinha, do cinema Guarani…Para a nova geração, ela não representa nada mais que uma nota destoante na cidade que começa a crescer com seus edifícios majestosos. Para nós os trintões aquela esquina apesar de feia e representar mal Novo Hamburgo, tem a força de nos manter prêsos a recordações inesquecíveis, ocorridas à nossa juventude.

Assim como eu, muita gente quando passa por ela há de perguntar, numa revolta contra o progresso. Porque pretenderam erigir, em substituição ao Guarani, um moderno e alteroso edifício?  Muita gente há de perguntar com saudades e belas reminiscências a povoar-lhes o coração. Porque demoliram o cinema Guarani, o cinema dos namorados? Os escombros são a própria resposta: ali estão eles enfeiando a esquina que já foi a mais importante da nossa cidade.

O cinema Guarani, o cinema dos namorados, é como lhe chamavam. Muitos casamentos felizes tiveram seu prólogo num beijo furtivo, trocado entre uma parte e outra do filme de mocinho (que nunca era visto direito) pelos casaizinhos de cabeça colada, mãos unidas e corações repletos de felicidade. O Guarani de tantas saudades que deixou, de tão ligado que a todos estava em muda revolta e, rendendo um preito de fidelidade aos amores que ali tiveram início, não permitiu que outro cinema fosse construído no seu lugar.

Cada um que passa, depois de olhar demoradamente para aqueles escombros, há de sorrir satisfeito e vingado. Vingado como o amante desprezado, cuja mulher infiel morre antes de pertencer ao rival. Derrubaram o Guarani, mas em seu lugar não conseguiram construir outro. É a maldição dos namorados representada por aquilo, ali naquela esquina feia… feia mas que já foi a mais bonita da cidade.

Porque não dizer? Afinal não será pecado nem novidade. Além disto não foi só para mim que aconteceu… Naquele dia tão distante no tempo, mas que a saudade sabe trazer tão perto, assistiam a matiné no Guarani, muitos outros casais, que como eu, trocaram o primeiro e inesquecível beijo de amor. Um beijo que não penetrava no sangue, ficava só nos sentidos, porque era um beijo puro, um beijo de amor aos 16 anos. Um beijo que é um mundo de poesia. Para uns foi o início de uma vida de felicidades que perdura, ainda hoje…Para outros, mais práticos, foi um primeiro beijo oportunista e conquistado com segundas intenções. Estes ao recordá-lo hão de rir do que escrevo, porque foi um beijo imoral…Para mim, quisera que aquêle primeiro beijo, pudesse ainda hoje ser recordado. Por não poder recordá-lo plenamente é que vejo com satisfação aqueles escombros e, depois e admirá-los demoradamente, parto satisfeito porque a destruição do Guarani foi vingada.

Relendo, agora, um pequeno diário onde anotava todos os acontecimentos após cada encontro com ela, leio o que está escrito à pagina cuja data assinala o dia inesquecível- 26 de fevereiro de 1944.Domingo! -Letras apagadas, escritas a lápis numa folha de papel que o tempo vai amarelando, que ao serem lidas sinto bem nítida a cena e parece-me ouvir novamente a voz que sussurrando ao meu ouvido diria: “Acreditas agora que eu te amo!” Eu não pude responder, porque ainda estava tomado pela emoção, mas abrigava no íntimo, a certeza de que acreditaria, para o resto da vida, naquele amor. Amor que Deus achou por bem interromper. Passados tantos anos, ainda vivo intensamente aquêle momento inesquecível ocorrido numa matinê do Cinema Guarani, há 15 anos, quando aquela esquina ali, era a mais importante da cidade.

 Foi o primeiro beijo e o primeiro amor. A eles me mantenho fiel até hoje. Muitas matinés depois daquela ainda fomos no Guarani, até que trabalhadores, indiferentes aos nossos sentimentos, meteram suas picaretas nas paredes e foram destruindo aos poucos, o altar de muitas felicidades.

Havíamos feito um juramento de só irmos ao Guarani, onde levaríamos nossos filhos quando tivessem idade. Eu, até hoje cumpro promessas. Ela não a tem cumprido.

Quando você, que está lendo esta crônica foi ao cine Lumiére ou Carlos Gomes e ver um cidadão, ainda jovem, andando cabisbaixo à entrada do cinema, sem entrar, nunca póde ter a certeza que sou eu, que ando a procura de alguém que comigo frequentava as matinés do Guarani, o cinema dos namorados.

Tenho visto muitos casais felizes, cuja felicidade foi iniciada como a minha, nas matinés do Guarani, onde trocaram o primeiro beijo de amor. Vendo-os eu pareço sentir- por momentos somente – que ela está novamente ao meu lado e que estamos a entrar no Guarani. Mas na realidade eu estou sentindo inveja pela felicidade que eles puderam conservar e maldigo-os por terem esquecido o cinema dos namorados. Eu, até hoje, estou cumprindo o juramento. Ela não pôde cumpri-lo porque morreu para mim quando demoliram o Guarani… morreu para mim porque preferiu os beijos de outro. Esquecendo aquele dia 26 de fevereiro de 1944 e esquecendo aquelas palavras que ainda hoje, ressoam em meus ouvidos como música maldita, como um pensamento frustrado.

Por isso me sinto vingado quando vejo aqueles escombros a enfeiar a nossa cidade… aqueles, ali naquela esquina, que já foi a mais bonita, a mais importante de nossa cidade. Ali onde existia o cinema dos namorados.