Jornal NH

No quarto mal iluminado da Beneficência Portuguesa de Porto Alegre, meu pai, paciente de uma melindrosa intervenção cirúrgica, balbuciava com dificuldade:

– Meu filho, toma conta da tua mãe.

Foram palavras proféticas, pois poucos anos após veio a falecer tragicamente e restou a minha mãe, que foi morar comigo aqui em Novo Hamburgo, onde vive até hoje. Diariamente ela vai até a loja e lá fica várias horas observando e conversando. Outras vezes, vejo-a andando pela rua, solitária, cabisbaixa. Muitas vezes passamos o domingo juntos. Como mãe, sempre pergunta como vou. Dos três filhos e marido, grupo que constituía nossa família, só restou eu, e por mais de uma vez tenho me perguntado, inquirido minha consciência, se realmente estou cumprindo a solicitação de meu pai moribundo, naquele quartinho escuro da Beneficência, lá longe no tempo. Honestamente, acho que não. Um filho teria de oferecer muito mais á sua velha mãe do que ofereço. Será que lhe é suficiente saber que eu vou bem, sempre que pergunta? Será que lhe satisfaz me encontrar sorridente no Café Avenida, quando passa rumo a seu quartinho no Hotel Doepre? Será que os domingos que passa em nossa companhia, são suficientes para compensar as suas enormes horas de solidão? Será que um “olá” ou um “tudo bem” é suficiente para uma mãe chegando aos oitenta, que vive cercada de recordações e retratos antigos, no seu pequeno reino de oito metros quadrados? 

O diabo é que a memória da pessoa só começa a fixar fatos, imagens, recordações a partir de um período em que a mãe ou o pai representam muitos estorvos, empecilhos para suas traquinagens do que mesmo pai ou mãe. Seu desvelo, suas preocupações, suas recomendações são recebidas muito mais como reprimendas do que manifestações de carinho. O período compreendido entre o nascimento até o momento dos folguedos, raríssimamente é registrado pelas memórias infantis. Os medos por qualquer doença, os pavores de uma mãe pelo filho que acorda de madrugada chorando, dificilmente é medido pelo amor filial, pois sua capacidade de sentir a presença dos pais é justamente quando ele começa a querer se livrar das preocupações paternas.

Percorrendo a ala nova do Hospital de Campo Bom, vi uma mãe com o filhinho recém-nascido, emoldurados pela porta do apartamento, como um terno e sublime quadro de amor. Aquela criança um dia crescerá sem jamais lembrar-se destes momentos, são os poucos em que uma mãe consegue ser mãe integralmente. Invariavelmente este período começa a terminar quando vão se acabando as fraldas e a criança aprende a fazer pipi. Daí em diante a ternura materna   passa ser tortura materna com mil preocupações diárias. Vendo minha mãe, que um dia foi senhora absoluta de um lar, quando vai tomar seu café matinal no balcão do Café Avenida, sinto que sou um mau filho ou, na melhor das hipóteses, sou um mau filho que não tem forças e argumentos suficientes para mudar esta situação que é semelhante a milhares de mães e pais idosos que procuram um cantinho só para si e suas recordações para não perderem por um todo a sua soberania.

Contudo, aquela senhora idosa, solitária com sua taça de café, no balcão do Café Avenida, todas as manhãs, é minha mãe. Mãe que um dia perdido nas minhas lembranças, mas bem vivo nas dela, envolveu meu corpo diminuto em seus braços no mais puro e belo gesto materno ao receber em seu colo o filho recém-nascido. Um dia eu fui recebido assim por minha mãe, acariciado como um gatinho mimoso, hoje quando a vejo de longe, permaneço impassível e mais que posso pensar é que aquela senhora lá atrás do balcão é minha mãe, senhora absoluta de um lar que o destino achou por bem destruir transformando-a numa dependente do filho único. Um filho que apesar de lhe amar bastante, há muito tempo não põe um braço em volta de seu corpo, afaga seus cabelos grisalhos e lhe diz palavras de carinho como ela dizia quando me tinha em seus braços. Um filho que ainda tem bem viva as palavras do pai, proferidas na obscuridade de um quarto de hospital. Não sei se terei atendido o pedido profético. Não sei se terei substituído os filhos e marido. Não sei se o que tenho oferecido tem sido suficiente para uma mãe. Só sei que ainda sou filho daquela simpática senhora que toma sua taça de café todas as manhãs no balcão do Café Avenida e cada vez que a vejo de longe e recebo seu aceno de mão, sinto saudade de uma casinha de madeira, com muitos animais, um grande pátio em volta, flocos de neve passando pela janela envidraçada, nas noites de inverno e um pai sempre às voltas com revoluções.

Quando a vejo assim, sinto que tenho uma mãe, mas gostaria de saber se ela sente que ainda tem um filho, com a mesma intensidade. Perguntas e respostas difíceis para duas criaturas que vivem cheias de amor, mas não saber dizer eu te amo.